(POESIA,LITERATURA e a CULTURA em geral)»»»»»»»»»»»»»»»» "Só existe o tempo único. Só existe o Deus único. Só existe a promessa única, e da sua chama e das margens da página todos se incendeiam. Só existe a página única, o resto fica, em cinzas. Só existem o continente único, o mar único – entrando pelas fendas, batendo, rebentando correndo de lado a lado". __________ Robert Duncan
quarta-feira, 28 de novembro de 2007
À beira das salinas os homens declinam,
as cabeças como cometas fulminantes.
De longe a longe vêm os filhos,
trazem a solidão como um metal aceso nas costas
trazem um enxame de dardos.
E a memória é um pulso atravessado.
Quando partem fecham atrás de si as portas,
e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas
e brilham.
Jorge Melícias
domingo, 25 de novembro de 2007
SALAMANCA
Aguarela do pintor Miguel Elías
Ressurreição
A Antonio Colinas
A ascensão das vozes a cada pancada hirta do sangue
transborda como cântaros de mel à beira do Tormes
os pássaros regressam aos abrigos das cópulas do sol
e os homens voltam a repousar nas estacas e brilham,
no leito incansável da pedra o último choro dos mortos
todos os germes oprimidos eclodindo como açucenas
o espaço da construção em feroz fulgor pois é inacabado,
ressuscita-se hoje das chagas e escreve-se o nome terra
na língua de fogo que abraça os livros que não sonharei.
João Rasteiro
PRÉMIOS VI
o conjunto de todos os
sábado, 24 de novembro de 2007
Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora
que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora
que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,
mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.
Luís Miguel Nava
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
À Fiama H.P.Brandão
Enquanto quis Fortuna
que tivesse
um monólogo de fogo voluteando
o frágil labirinto das vozes,
partilhou as fábulas do louvadeus.
Agora, o rosto puro da água
perdeu a casta do sangue
o subtil cortejo da sílaba a queda
contínua a ferocidade de uma outra rosa
no fundo da cabeça do hóspede.
Não te conformaste com este mundo.
Sob a película do ventre cintilante da luz
os ávidos sentidos a chama cortante
voltada outra vez aos primórdios
do sopro mais extenso do que o eco.
E hoje, é este o lugar a branca flor que fulge.
João Rasteiro
terça-feira, 20 de novembro de 2007
Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.
Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.
Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem do
oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.
Casimiro de Brito
segunda-feira, 19 de novembro de 2007
João Rasteiro
Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha
Ruy Belo
domingo, 18 de novembro de 2007
O desejo
o teu corpo
uma seta
acordada em chegadas
mande-o ainda em poemas perversos
de antilira, feito em antiverso
(ou será ele
o meu sopro de metal
que me alimenta
e decepa?)
é natural
poetas e poetas que buscam
o requinte das orquídeas
e também o teu sopro
era a perfeição
e todos os que entravam
te roubavam
um pouco de mim
o frenesim de olhar-te espanto
raiz poema
sobretudo isso – o respirar-te.
PRÉMIOS V
Na área da poesia, Nuno Júdice referiu ainda a experiência "muito interessante" de ter escrito para um fado tradicional respondendo a um desafio que lhe foi lançado por Carlos do Carmo. Para o próximo ano, Nuno Júdice promete editar um novo livro de poesia. O Prémio Nacional de Poesia, com o valor de 5000 euros, foi entregue na Biblioteca Municipal António Ramos Rosa, em Faro, durante um recital integrado em "Faro, Capital dos Poetas e da Poesia".
"O regresso a uma linha de poema narrativo, tratando os grandes problemas da poesia desde a era clássica até hoje. Mas há também um ponto de partida nas “coisas mais simples“ do quotidiano e da realidade, que são o motor do imaginário destes poemas".
Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
Nuno Júdice
Ver Ensaio da minha autoria sobre a poesia de Nuno Júdice:
http://triplov.com/poesia/Nuno-Judice/Bios/index.htm
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
A ROSA
terça-feira, 13 de novembro de 2007
O Centro do Mundo
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
segunda-feira, 12 de novembro de 2007
WILLIAM BLAKE
O projecto concebido pelo professor universitário e tradutor Manuel Portela, hoje apresentado em conferência de imprensa, desenvolve um diálogo entre diversas disciplinas artísticas com as criações de Blake para destacar a obra de um dos grandes artistas da humanidade, ainda pouco conhecida em Portugal.
O Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), que tem como director Manuel Portela, é o palco escolhido para as realizações programadas e também o produtor desta homenagem, em dois espectáculos, com a colaboração dos grupos de teatro Camaleão e Marionet e a Orquestra Clássica do Centro (OCC).
Entre as várias iniciativas (algumas já realizadas ou inauguradas) amanhã dia 13 realiza-se a segunda mesa-redonda, "Blake poeta", com a presença de Gastão Cruz e Manuel Portela, dois dos principais tradutores para português de William Blake.
Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria ?
Em que longínquo abismo, em que remotos céus
Ardeu o fogo de teus olhos ?
Sobre que asas se atreveu a ascender ?
Que mão teve a ousadia de capturá-lo ?
Que espada, que astúcia foi capaz de urdir
As fibras do teu coração ?
E quando teu coração começou a bater,
Que mão, que espantosos pés
Puderam arrancar-te da profunda caverna,
Para trazer-te aqui ?
Que martelo te forjou ? Que cadeia ?
Que bigorna te bateu ? Que poderosa mordaça
Pôde conter teus pavorosos terrores ?
Quando os astros lançaram os seus dardos,
E regaram de lágrimas os céus,
Sorriu Ele ao ver sua criação ?
Quem deu vida ao cordeiro também te criou ?
Tigre, tigre, que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão, que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria ?
Tradução de Ângelo Monteiro
Versão Original:[Leia a versão original desta Poesia: The Tiger, de William Blake - em inglês]
domingo, 11 de novembro de 2007
Criação
Morte significa corpo áureo
umbilical
se
a palavra é uma cicatriz
perfeita
sob o branco aberto do sangue
lúcido
demasiado cru na língua
oferecida
se
a garganta é um fole
chumbado
sob a lava visível da boca
elíptica
sucessivamente árida nos dentes
castrados
se
os animais se cosem ao corpo
insurrecto
mergulhando nas vísceras alquímicas
vozes
sob todos os solos auríferos
ventres
se
em seu cortejo o corpo principia
absoluto
nesse espaço único de tímpano e pupila
vagas
onde a luz não difere da escuridão
o corpo ileso
toda a queimadura intrínseca do eixo dos animais.
João Rasteiro
Prémios IV
Antonio Lobo Antunes nasceu em Lisboa, em 1942. Médico psiquiatra, foi convocado pelo exército português para servir na guerra em Angola. É considerado por vários críticos em todo o mundo como o mais importante romancista português depois de Eça de Queirós. António Lobo Antunes tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes do Portugal do século XX.Em Setembro, no 7.º Festival de Literatura de Berlim, António Lobo Antunes foi longamente aplaudido por centenas de centenas de pessoas que assistiram a uma leitura das suas obras, em Português e Alemão. António Lobo Antunes foi apresentado pelos responsáveis do festival de Berlim 2007 como «o maior escritor lusitano da actualidade». O seu ultimo romance «O Meu Nome é Legião» é já considerado outra das grandes obras do autor. Em 2007 foi galardoado com o Prémio Camões, na sua 19ª edição.Para quem gosta de A. Lobo Antunes aqui fica a entrevista integral no Diário de Notícias, da semana passada. Pode ler-se “alguma coisa” aqui >>.
«"O Meu Nome É Legião" narra-nos um universo povoado de seres dilacerados e estilhaçados, que vivem um conflito interior travado entre as várias facetas das suas personalidades, em luta contra os fantasmas e as obsessões que teimam em surgir e põem a nu fragilidades inconfessáveis e sofrimentos inomináveis.»
«Não será, porém, a beleza, antes a “palavra justa” que o move. Nessa busca vem António Lobo Antunes construindo uma obra na qual, apesar da crueza das temáticas e da claustrofobia instalada, a compaixão pelas personagens se imprime na sua capacidade para as compreender a todas no desespero comum aos deserdados, que somos todos – aqui: polícias, filhos, putas ou criminosos – , “possessos de vários demónios” que cabe ao escritor dar a ver mas não julgar. À maneira de Tolstoi, porventura, o maior de sempre.»
Excerto da obra:
IN, Webboom.pt
sábado, 10 de novembro de 2007
A magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.
Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária,e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
Luiza Neto Jorge
O Juízo Final
O território dos anjos
esta é a nascente o horto
dos anjos
a luz interrompida do espigão
velhas falas do jardim do éden
Hebrom entrançado
talhado em línguas de delírio torrente espraiada
o milagre em ti sedento ser rupestre
das acácias tenras no golpe
coroas vermelho-cereja geografias
um jardim flor as entranhas do casulo
florindo o desastre
a reincidência das cobras
a terra do júbilo o sémen demoníaco
sob as luas da velha cidade esférula
tanta chuva vermelha manhãs ausentes de vozes concêntricas
O
o dia os dias das preces
sílabas dos lábios do Mediterrâneo raiado
o metal despojado dobrado fundente
brilho do mar o sal nas veias abertas
os antigos corpos fendas à saída de Khan Yunis
vulcões de roseiras bravas
animais cegos
vagueando em círculos a verdade
na convulsão dos anjos
a extracção do ferrão
O
toda a cegueira os olhos de pedra numa cidade de chumbo feroz
na hora das silhuetas o metal irrompemdo fresco
o coração dos sábios
o sísmico fascínio
do crime indistinto
procurando o equilíbrio sagrado da estocada
no monte das tentações
corpos anjos demónios a respiração
o hálito carnívoro das raízes do mel
um rasgão de asas na súplica do verbo.
João Rasteiro
PRÉMIOS III
FELES
Por todo um Inverno,
O amor lhe dilacerou o ventre,
Com fundas garras de gelo.
E a Primavera zumbiu,
Sobre sua cabeça,
Numa vertigem de pólen.
Senta-se agora,
Junto à lareira do Outono,
E é um bule de porcelana.
Mário Cláudi0
terça-feira, 6 de novembro de 2007
POESIA
Oráculo
Deixa que chegue a ti o que não tem nome: o que é o fogo.
Tocaste a luz, a quietude da luz, e inventaste a blasfémia,
a respiração: retrocedeste em círculos: desceste ao pântano
das madrugadas que se acolhem largadas sob as chuvas:
cerziste a fronte das fábulas ilibadas: penetraste no corpo
na pele viscosa: prosperou o múltiplo: a raiz engendrada:
tu és e não és mortal. O enxerto a luz testificada. Para que
continues e te perpetues: para que o útero te engendre e
multiplique: para que só acordes com os olhos comidos,
como os mortos depois de desenterrados. Ressuscita puro.
Para seres a sílaba em seu gume e ferir o sangue e gerar as
águas. O repouso exacto das vísceras o sémen predilecto.
João Rasteiro
LEITURAS
John Mateer vai ler e falar sobre os poemas incluídos em Southern Barbarians, um livro que contempla o legado do Império Português a partir do outro lado do espelho, do mundo colonizado e por descobrir. Os poemas desta colecção foram começados quando Mateer esteve em Portugal em 2004, como poeta convidado para o V Encontro Internacional de Poetas, em Coimbra, e o livro inclui poemas escritos no Japão, em Macau, em Veneza e na Austrália.
E quando a sua caravela desliza Tejo adentro,
JOHN MATEER
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
Prémios II
(fonte: Diário Digital)
São plátanos palmeiras castanheiros
jacarandás amendoeiras e até as
oliveiras que
quando a noite cai na infância formam uma
cortina escura na estrada frente à casa
árvores apagando os dias que a memória
avidamente esconde
no corpo do seu gémeo Penetra inutilmente
na terra essa raiz do branco plátano
adolescente
e o campo do tempo onde as palmeiras eram
pilares do corpo nu símbolo de
si mesmo, à luz
do dia fixo, já se estende
na húmida manhã dos castanheiros
Esquecimento que tudo enfim possuis
e geras
a ofuscante luz igual à da
memória, do tempo como ela
filho, construtor da ausência,
em vão te invoco Tu
que mudas a roxa amendoeira
em brancas flores do jacarandá
entrega a minha vida às árvores
que foram na manhã e no crepúsculo
no meio-dia e na noite, palavra
clara que traz o dia em si fechado
Gastão Cruz
domingo, 4 de novembro de 2007
Hoje corri todos os jardins da terra
e estou ao pé de ti de mãos vazias meu amor,
os jardins só respiram esse fulgor desnudado
a rutilar caligrafias mesmo no centro da pedra.
Amanhã voltarei a correr todos os jardins
ao ritmo quase imóvel de um segredo,
num murmúrio que preserve o alento
para mergulhá-lo numa boca de mulher.
Hei-de correr todos os jardins sagrados
que habitam subtis e espessos labirintos,
e encontrar os vocábulos das pétalas da rosa
que unem o interdito ao centro das palavras.
E é como se as rosas nascessem dos dedos
como uma raiz imitando os frutos meu amor.
João Rasteiro
04-11-2007
sábado, 3 de novembro de 2007
PRÉMIOS I
Aparentemente sem saber que tinha ganho o Nobel, Doris Lessing soltou uma breve e humorada exclamação perante os vários jornalistas que estavam há duas horas à sua espera junto à sua residência.
Doris Lessing, que completa 88 anos no dia 22, é a 11ª mulher a ser distinguida com o Nobel da Literatura, um prêmio que se junta a várias outros , entre os quais o prémio espanhol Príncipe de Astúrias das Letras (2001), o prémio britânico David Cohen (2002) e o prêmio Médicis de França.
Doris Lessing foi por três vezes nomeada para o Booker Prize, o mais importante atribuído no Reino Unido, mas nunca o recebeu.
"The golden notebook", "A erva canta", "O quinto filho" ou 'The Cleft", o seu mais recente romance, são algumas das obras assinadas por Doris Lessing.
Viste o cavalo varado a uma varanda?
Às estrelas que nos alumiam
Na beleza incurável das feridas
caminhando gota a gota. E as feridas incautas
todo o tempo, todo o amor, de uma vida sem história.
João Rasteiro
sexta-feira, 2 de novembro de 2007
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.
Mário Cesariny
02-11-2007
TRAGÉDIA
Ele é a alta voltagem de um nome,
o selo que reverbera de dentro
quando as cavilhas fecham as córneas.
Jorge Melícias
Apenas vi mais um condenado, simplesmente
invadindo paisagens como demência de pássaros
o poeta com mais sangue que água - festim
mais ingénuo que agonia - corpo vasto despido
como se encobrisse cada golpe o mênstruo novo.
Na cilada guinchos sagrados triturando chagas
forma robusta de lume rasgada pelos dentes
sulco álgido da alucinação sedenta de banquetes
farejando o eclipse materno porque desígnio,
poeira, onde bichos se devoram extasiados entre si.
E ele, que se via atravessado pelas garras prenhes
flores virgens nas entranhas agonizantes de sol,
da carne à terra a matéria extraída do doce crime.
Ao seu lado as suas próprias vísceras nuas abertas
lágrimas cosidas numa tábua aplainada de desejos.
A seiva do mundo espetada na pele como esporas
vozes órfãs reunindo-se oferenda contra a morte.
Aí nasce pela primeira vez o clamor do relâmpago
sangue sem nome gerando a pupila do besouro.
Ninguém já sabe o que busca entre a ávida língua.
O Mestre
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
A Génese
À entrada de um túnel está um homem
com uma bandeira. É para a cobra que
ele acena, respondendo a um sinal.
- Jaime Rocha -
que irradia a morte soberana
os lugares sitiados a blasfémia do silêncio.
Todos morrem nas palavras disponíveis
apenas os corvos tristes
a quem soldaram o bico no fulgor da prata
suspendem astutamente a morte
no branco das túnicas da água visível.
É nesse espaço ancestral
onde antes iam os homens sedentos
alimentar a fractura das vísceras
bebendo de rastos com as cobras
que a chuva desaba geométrica
estilhaçando o alastro da garganta
que guarda as sílabas com aroma de tílias.
O homem está morto dentro do poema
como a linguagem das antigas escrituras
e é o seu corpo que brilha através do branco.
As cobras emergem do chão
abrigam-se dóceis nas túnicas álgidas
acercam-se do corpo do homem exposto
iluminadas em sua própria loucura.
Engolem os restos da carne corrompida
e inexplicavelmente poupam-lhe os olhos
depois saboreiam o que lhes vai consumir
para sempre a língua o coração das entranhas.
O segredo absoluto e divino do extermínio do verbo.
João Rasteiro
01-11-07